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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Clonagem Humana : Ética ou Antiética?




Os heróis punidos


Pode-se dizer que boa parte da mitologia antiga, grega, romana ou oriental, enfatiza os perigos que incorre o ser humano ao tentar ultrapassar os limites fixados com leis de ferro da Natureza, amparada pelos deuses. Basta lembrar a lenda de Ícaro, o jovem filho de Decalião que tentou voar e terminou tragicamente, ou ainda a tão conhecida história do titã Prometeu que, desconsolado com a ignorância e miséria dos homens, roubou o fogo sagrado dos céus para ajudá-los a sair do embrutecimento em que se encontravam.

Os exemplos são inúmeros e até hoje são sempre lembrados quando a ciência avança sobre áreas que consideramos melindrosas ou sagradas. No entanto, os homens curiosos e cientistas corajosos e capazes, mesmo arriscando suas vidas, jamais negaram-se a ir em frente. Tiveram que enfrentar a incompreensão das autoridades, o fanatismo e a superstição do povo comum, a revolta do clero e por vezes o calabouço, o exílio, a pobreza forçada ou a fogueira por terem defendido concepções que hoje consideramos absolutamente aceitáveis e naturais mas que no tempo em que foram proferidas foram consideradas heréticas ou demoníacas.

Obviamente que uma das mais delicadas é a que trata da criação de um novo ser: quando o Homem, ao arrepio de Deus, tenta imitá-lo e dedica-se a criar, com seus próprios recursos, um ser humano. Existem, en quase todas as culturas, uma infinidade de histórias que registram essas tentativas fracassadas. Além do Prometeu dos gregos, uma dessas narrativas lendárias mais antigas diz respeito ao Golem, uma Criatura que teria sido forjada pelos judeus de um gueto da Polônia no século XII. Após o esforço de terem pronunciado 221 palavras cabalísticas dos modos os mais diversos possíveis eles encontraram a fórmula mágica para fazer do barro um ser humano. A Criatura, que não dizia uma só palavra, foi marcada na testa com a palavra hebraica Emert (Verdade), para distingui-lo dos demais, mas depois de terem perdido o controle sobre o Golem tiveram que destruí-lo, transformando-o de novo em pó.
O Mito de Prometeu
"Os benefícios que fiz aos mortais atraíram-me este rigor. Apoderei-me do fogo, em sua fonte primitiva: ocultei-o num cabo de uma bengala, e ele tornou-se para o homem a fonte de todas as artes e um recurso fecundo." - Ésquilo - Prometheus Desmontes, circa de 463 a.C.

Mas não só em lendas judaicas medievais ocorreu a idéia do Homem imitar Deus. A literatura também o fez. Em 1774, o escritor alemão F. W. Goethe publicou um pequeno poema (Prometheus)com apenas oito estrofes, no qual lançou o grito de guerra do Prometeu redivivo. O titã descrito por Goethe não aceita mais venerar Zeus, dizendo ser a divindade invejosa e inservível por que em mais nada ajuda o Homem. Ele sim, liberto da vassalagem divina, iria doravante criar outros homens que, em tempo, viriam ser iguais a ele. Esses novos homens não teriam mais nenhum compromisso com a devoção aos deuses, seriam totalmente livres. Essa pequena estrofe serviu de inspiração para que depois surgisse o culto ao Gênio, ao homem extraordinário que, sozinho, constrói o seu destino sem temer a mais ninguém e a mais nada. A partir de então o titã tornou-se um dos heróis mitológicos favoritos do Movimento Romântico e, não só dele, até o materialista Karl Marx confessou que seu herói favorito - o seu homem-modelo - também era Prometeu.

Prometheus *

(Poema de F.W Goethe, de 1774)

"Encobre o teu Céu ò Zeus
com nebuloso véu e,
semelhante ao jovem que gosta
de recolher cardos
retira-te para os altos do carvalho ereto

Mas deixa que eu desfrute a Terra,
que é minha, tanto quanto esta cabana
que habito e que não é obra tua
e também minha lareira que,
quando arde, sua labareda me doura.
Tu me invejas!

(...)

Eu honrar a ti? Porque?
Livras-te a carga do abatido?
Enxugaste por acaso a lágrima do triste?

(...)

Por acaso imaginaste, num delírio,
que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo
por alguns dos meus sonhos se haverem
frustrado?

Pois não: aqui me tens
e homens farei segundo minha própria imagem:

homens que logo serão meus iguais
que irão padecer e chorar, gozar e sofrer
e, mesmo que forem parias,
não se renderão a ti como eu fiz"

(*) Prometeu foi um titã da mitologia grega que roubou o fogo (a sabedoria e a ciência) dos céus. Foi punidos por Zeus com o castigo de ficar encadeado a uma rocha no Cáucaso, onde uma águia diariamente lhe bicava o fígado. Sua sina foi teatralizada pela primeira vez por Ésquilo (525-456 a.C.), no século V a.C., com o titulo de Prometeus desmotes

Prometeu tornou-se, desde os tempos de Ésquilo (a tragédia foi representada no século V a.C., em Atenas), o símbolo da eterna insatisfação humana com seu destino. O Titã que não se conforma nunca com os acasos e a inconstâncias da Natureza e que se revolta contra a tirania dos deuses. Prometeu é o homem que tenta construir o seu próprio destino sem aceitar interferência divina. Enquanto o herói da lenda grega teve de suportar o suplício, o moderno Prometeu tem um como tarefa modelar à sua feição e imagem, não só o Mundo como a si mesmo. Façanha essa que agora é possível porque surgiu um novo tipo fogo, um fogo (o conhecimento) não mais roubado dos Céus mas sim desenvolvido por ele mesmo e formado pela Ciência e a Tecnologia.



O Monstro Frankenstein




A adesão a esse novo Prometeu Renascido, que emergiu do Movimento Iluminista e da Revolução Industrial do século XVIII, filho da Razão e da Técnica, não foi uníssona. Muito pelo contrário. E a oposição a ele não partiu só da Igreja Católica e dos pastores da Igreja Reformada. Os poetas, escritores e intelectuais do Movimento Romântico que então começava a predominar no cenário cultural europeu, também manifestaram seus temores frente ao novo titã. Em 1818, Mary Shelley, esposa do poeta Percy Shelley, escreveu uma novela gótica que assustou todo o mundo: Frankenstein.


Na novela, um talentoso médico e cientista de nome Frankenstein tenta dar vida a uma série de membros e órgãos humanos retirados de cadáveres distintos. Depois de várias tentativas laboratoriais, utilizando-se largamente de choques e correntes elétricas, a Criatura desperta (naquela época difundiram-se as experiências feitas desde 1800 com a bateria elétrica de Volta e a eletricidade animal de Galvani). Em pouco tempo, ao escapar do fantástico laboratório do dr.Frankenstein, o Monstro de forma humana vai deixando um rastro de mortes e de pavores em sua fuga. Termina por ser incinerado por uma massa de camponeses assustada e furiosa. Portanto, o Prometeu de Mary Shelley (o dr.Frankenstein) ao tentar rivalizar-se com Deus na tentativa de também dar a vida a alguém, fez por gerar no seu laboratório uma anomalia, uma perigosíssima ameaça à comunidade.
O medo ao novo
De certo modo, muitas das fobias antigas voltaram à luz com a notícia da clonagem de uma ovelha adulta feita na Escócia pelo Instituto Roslin, em 1997. Governos, igrejas, seitas religiosas de todas as crenças, manifestaram profundo receio perante a possibilidade de se clonar, em breve, um ser humano. As sanções e ameaças feitas aos cientistas, caso eles tentem isso, variam de simples negação de verbas federais até medidas mais rigorosas como pena de prisão. Isto tudo afinal é muito natural. Toda inovação revolucionária provoca um choque ético na humanidade. Mas com o tempo, as barreiras uma a uma vão caindo, e aquilo que foi encarado certa vez como uma blasfêmia, ou um crime contra Deus, passa a ser visto com toda a naturalidade. Quem se negaria hoje a vacinar-se contra febre amarela. No entanto, a sua obrigatoriedade introduzida no Rio de Janeiro pelo cientista e sanitarista Dr. Oswaldo Cruz, provocou a Revolta da Vacina de 1904.

Feita essa ressalva é certo que Prometeu, quer queiram ou não, irá cumprir a sua promessa feita nos tempos do Romantismo de conseguir fazer nascer criaturas à sua imagem, pois o homem moderno está condenado a ser "o senhor e dono da Natureza".

Não se pode entender essa extraordinária Revolução da Biogenética que hora assistimos sem recuarmos no tempo. É preciso fixar-se o momento em que a mentalidade do homem ocidental começa a mudar. Desde o Renascimento italiano, a partir do século XV, o Humanismo procurou fazer com que gradativamente as atenções dos estudiosos se voltassem não para as coisas do Céu, como se fazia na Idade Média, mas para o que cercava o Homem: a Terra, a Natureza, a Vida. Decorrente dessa nova postura, cultivou-se um pensamento cada vez mais inclinado para a ação e não mais para a contemplação. Devotou-se um amor cada vez maior pela existência e pelas ciência naturais. Ocorre, a partir de então, um gradativo desprestígio da vida monacal, enclausurada nos Mosteiros, dedicada à ascese e às orações. O atrativo para o homem do Renascimento passou a ser o agir, a conquista dos mares, as grandes aventuras, a atração pelo descortinar dos oceanos e culturas desconhecidas. Abandonam o exemplo dos Santos como um ideal a ser imitado e os substituem por Marco Polo, o homem que desbravara Cipango e conhecera os Canatos da Ásia.
Nas artes, celebra-se a beleza física e o nu ou semi-despido que voltam a ser apreciados como nos tempos greco-romanos. Reintroduziu-se a perspectiva e a proporção nas artes visuais e utiliza-se, como o fez Leonardo da Vinci (1452-1519), os conhecimentos da ciência física - especialmente a ótica - nas composições pictóricas e nas esculturas. Todos eles estudam anatomia, apesar das restrições impostas pela Igreja Católica. Copérnico, Kepler e Galileu, por sua vez, devastam os céus; Colombo, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, abrem os caminhos das imensidões salgadas; o Dr. Harvey decifra o mistério da circulação do sangue, enquanto bem antes deles todos Gutemberg provocava com seu invento, a imprensa, a maior revolução cultural desde o surgimento do alfabeto. Na geração seguinte a de Galileu, que escrutinara os céus com seu telescópio, Anton Van Leuwenhoek, de Delft, girava a sua poderosa lente para baixo, para um gota d'água, para ir encontrar a bactéria, descoberta por ele em 1683. Desde então, que saltos deu a microbiologia, graças aquele Colombo holandês armado com um microscópio.

O processo de Desmagização do Mundo tinha o seu início. Ninguém mais acreditava que os chamados Mistérios de Deus (as coisas e fenômenos que os homens não podiam explicar ou entender) durariam muito. Autoconfiante e cada vez mais auto-suficiente, a Humanidade partiu para conquistas cada vez mais ousadas e mais espetaculares. De certa forma atendia-se o grande chamamento feito na época do Renascimento, pelo que se consagrou como o Manifesto do Humanismo, que enfatiza a possibilidade do homem vir a construir o seu próprio destino com suas próprias mãos







Síntese das Correntes e Teorias



Cartesianismo

R. Descartes: "Tratado do Homem" (Le Traité de L'Homme), 1662
Tese do Homem-Máquina, preserva no entanto a separação do corpo (autômato) e do espirito (alma)




Antropologia Materialista

La Mattrie - "O Homem-Máquina" (L'Homme-Machine), 1747
Integração do corpo e do espírito, homem vive das sensações
Ética: vive-se para o gozo e o prazer




Utilitarismo

J. Bentham "Introdução aos Princípios Morais e Legislação", (Introduction to the Principles of Morals and Legislation), 1798
Ética: O "Bom" é o útil e "mau" é o inútil
Objetivo: "a maior felicidade para o maior número possível"



Positivismo

Comte: "Discurso Sobre o Espírito Positivo" (Discours sur L'Esprit Positif), 1844
A teoria dos 3 estágios (O teológico, o metafísico e o científico). Anúncio da Era Científica ou Positiva



Darwinismo
C. Darwin: "A Origem das Espécies" (On the Origin of Species), 1859
Explicação naturalista da origem humana por meio da seleção natural e da sobrevivência do mais apto




O Homem Neuronal

J. Monod " Acaso e Necessidade" (Le Hasard et la Necessité), 1970
F. Jacob "A Lógica Vivente" (La Logique Vivante), 1970
J-P. Chargeux "O Homem Neuronal" (L'Homme Neuronal), 1983
A vida como resultado de mecanismos biofísicos
Homem é uma máquina neuronal




A bioética


O termo bioética é recente. Surgiu em 1970 num artigo escrito por Van Rensselar Potter, com o título "The Science of Survival" e, no ano seguinte, em 1971, no livro "Bioethics: Bridge to The Future" onde pregou a necessidade de se estabelecer uma ponte entre o saber científico e o saber humanístico. Ela tem por objetivo associar a biologia à ética, por meio de uma prática interdisciplinar, onde esperam os médicos, homens de ciência, advogados, juristas, religiosos, atuem em comum para estabelecer um conjunto de normas aceitável para todos.
Qual a razão da emergência da bioética?
Ocorre que nos últimos anos a medicina, a biologia e a engenharia genética alcançaram extraordinários avanços: multiplicaram-se os transplantes, experiências bem sucedidas com animais se multiplicaram, inseminações artificiais se tornaram corriqueiras, bem como nascimentos humanos fora do corpo humano (fertilização in vitro). Igualmente pela crescente legislação, adotada por vários, países, que permite o aborto e, em menor escala, a eutanásia. Ela tem procurado orientar não só os cientistas dedicados a experiências genéticas como também a opinião pública e os legisladores em geral. Aos cientistas alerta-os para os limites da sua investigação, à opinião pública para esclarecê-la e aos legisladores para que façam as leis seguindo princípios éticos aceitáveis.
Diferentes momentos da Bioética
a) Bioética geral: ocupa-se das funções éticas, é o discurso sobre os valores e os princípios originários da ética médica e sobre fontes documentais da bioética
b) Bioética especial: analisa os grandes problemas enfrentando-os sempre sob o perfil geral, tanto no terreno médico quanto no biológico (engenharia genética, aborto, eutanásia, experiência clínica, etc...). São as grandes temáticas da bioética.
c) Bioética clínica (o de decisão): trata da praxis médica e do caso clínico, quais são os valore em jogo e quais os caminhos corretos de conduta.







Grupo de pesquisadores rejeita
alertas, menospreza riscos e
afirma que iniciará em novembro
uma experiência com 200 mulheres
para produzir o primeiro clone humano
Daniel Hessel Teich e Ana Santa Cruz
Começou a contagem regressiva para a mais ousada, arriscada e polêmica experiência biológica de todos os tempos. Anuncia-se agora a produção por clonagem de um ser humano em laboratório. Na semana passada, o médico italiano Severino Antinori e seus associados afirmaram durante uma reunião na Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, em Washington, que a primeira clonagem humana tem início em novembro. Duas centenas de voluntárias já contratadas terão implantados no útero embriões produzidos artificialmente por um método que só há poucos anos vem sendo tentado em animais, com resultados estatisticamente desencorajadores. Mesmo assim, o italiano vai tentar produzir a cópia idêntica de uma pessoa a partir de uma célula comum retirada da pele. Depois do anúncio, a França e a Alemanha pediram à ONU que inicie imediatamente um diálogo mundial para banir a clonagem de seres humanos. A Igreja também atacou, tachando as experiências de nazistas. Segundo o Vaticano, o médico italiano tenta reviver desumanas experiências de homogeneização da raça feitas pelos alemães durante a II Guerra Mundial.
"O Vaticano me comparou a Hitler, mas me considero um Galileu Galilei", reagiu Antinori. Por ironia, a clínica de Antinori, em Roma, é vizinha da Basílica de São Pedro. Em janeiro passado, quando o italiano Antinori e o americano Panayiotis Zavos, dono de uma clínica no Estado americano de Kentucky, anunciaram a intenção de clonar um ser humano, eles despertaram pouco mais que curiosidade da opinião pública e desprezo da comunidade científica. Desde a terça-feira passada, no entanto, quando deram a conhecer os detalhes práticos já avançados do extraordinário experimento, Antinori e Zavos produziram uma sensação diferente. Na comunidade científica e até entre governos, o anúncio da clonagem humana provocou inquietação.
"Gostemos ou não das credenciais de Antinori e Zavos, o fato é que eles queimaram a largada da corrida para a produção do primeiro clone humano. Vai ser difícil agora segurar o segundo pelotão de cientistas", disse James Watson, biólogo que ganhou o Prêmio Nobel, junto com Francis Crick, pela descoberta da forma da molécula da vida, o DNA, feito que deu impulso à pesquisa genética. Embora um tanto excêntrico, Watson ainda sabe fazer-se ouvir pelos colegas. Terminada a exposição, a dupla ítalo-americana foi bombardeada com questões técnicas dos cientistas. Eles contornaram os problemas mais polêmicos, como a certeza de que, para cada três bebês nascidos aparentemente sadios, a clonagem vai gerar quase duas centenas de fetos monstruosos destinados a morrer no ventre das voluntárias hospedeiras, cujas vidas também estarão em perigo. Diante de uma audiência incrédula, Zavos disse que conseguiu produzir uma bateria de exames capaz de atestar a saúde genética de um embrião clonado antes de implantá-lo no útero de uma mulher voluntária. "É um trabalho importantíssimo para a humanidade, e nós o faremos", disse Antinori. "Há centenas de pacientes dispostos a aceitar o risco em nome de um filho que não podem ter de nenhuma outra forma", argumentou Zavos.
A decisão da dupla chegou a um ponto de não-retorno. Para driblar as improváveis barreiras legais que possam enfrentar para fazer a experiência na Itália, os doutores da clonagem receberam o convite de meia dúzia de governos em diversas partes do mundo dispostos a financiar a aventura. "Em último caso, faremos num transatlântico em alto-mar", disse Antinori no tom de bravata típico que nada ajuda em sua busca de credibilidade.
Os detalhes científicos do processo foram ofuscados na semana passada pela sensação bem mais forte de que, funcionando ou não, a clonagem de um ser humano parece inevitável. "Não há como negar que muitos cientistas renomados estavam esperando alguém tomar a decisão de fazer a experiência. Uma vez obtidos os primeiros resultados e passada a gritaria inicial, a clonagem se tornará uma rotina", disse o biólogo Lee Silver. "Caso Antinori consiga clonar um ser humano, vai haver uma pressão insuportável de grupos dispostos a repetir a experiência", afirma o médico paulista Roger Abdelmassih, especialista em fertilização artificial. Entre os cientistas que foram assistir ao anúncio dos médicos da clonagem em Washington, as opiniões se dividiam de modo ainda mais contrastante. Alguns opositores consideram improvável que uma força externa possa impedir a dupla de fazer a experiência. O melhor, então, seria torcer para que dê tudo errado e que eles produzam monstros genéticos. Dessa forma, acreditam os opositores do experimento, a opinião pública ficaria assustada e isso adiaria a clonagem por décadas. E se der certo? A imagem de um bebê clonado perfeito, cor-de-rosa, choramingando no colo da mãe mudaria o mundo científico para sempre. Tanto quanto ocorreu no nascimento há 23 anos do primeiro bebê de proveta, a inglesinha Louise Brown. Quando Louise veio ao mundo, as técnicas rudimentares de concepção in vitro davam certo em apenas 5% dos casos. Hoje beiram os 50%.
Com base nas experiências semelhantes com vacas, cabritos e macacos, a clonagem humana tem 1,5% de chance de produzir um bebê vivo. E sadio? Bem, quanto a isso as certezas são menores. O processo de clonagem é quase uma loteria. Zavos e Antinori terão de obter cerca de 2.000 óvulos para tentar engravidar as 200 mulheres que se apresentaram como voluntárias para gestá-los. Desse grupo, acredita-se que apenas trinta não perderão os bebês logo nos primeiros meses de gestação. As demais vão abortar naturalmente ou precisarão ter a gravidez interrompida para evitar que fetos defeituosos coloquem em risco suas vidas. Das trinta que conseguirem manter a gravidez, apenas oito concluirão os nove meses de gestação e darão à luz seus bebês. Ao nascer, cinco dos bebês poderão apresentar problemas tão graves de saúde que deverão morrer ou ser submetidos à eutanásia logo depois do parto. Apenas três serão sadios, a ponto de passarem no berçário por bebês concebidos normalmente. "É inevitável ter problemas agora. Tanto quanto é inevitável que esses problemas tendam a diminuir com o crescente domínio da técnica", diz Antinori. Na semana passada, dava-se como certo que o presidente americano George W. Bush se manteria fiel às promessas de campanha e vetaria verbas federais para as pesquisas com embriões humanos. Quando Bush anunciou sua decisão, surpreendente, de favorecer certos tipos de pesquisa com células de embriões, os analistas atribuíram a mudança de opinião do presidente à pressão dos cientistas americanos. "É imaturidade acreditar que os Estados Unidos vão deixar outros países liderarem a pesquisa genética com embriões humanos", disse Harry Griffin, diretor do Instituto Roslin, onde em 1996 foi clonada pioneiramente a ovelha Dolly, que nasceu sem pai e é uma cópia perfeita de um animal adulto. Numa primeira abordagem do tema, há duas semanas, o Congresso americano votou contra a clonagem humana em território americano. A decisão de Bush, porém, abre caminho para que a técnica seja estudada e aprimorada sem que se produza efetivamente um bebê. Bush anunciou que vai financiar pesquisas em que cientistas utilizem embriões que foram feitos pelos métodos atuais de fertilização artificial e não puderam ou não precisaram ser implantados nas mães. As células desses embriões serão usadas em pesquisas que tentam desenvolver métodos de tratamento mais eficazes para doenças genéticas como mal de Parkinson e Alzheimer, ou metabólicas, como o diabetes juvenil. Uma outra linha de pesquisa experimenta usar essas células embrionárias para tratar lesões vertebrais provocadas por acidentes.
Na tentativa de clonar o primeiro ser humano, os médicos Antinori e Zavos usarão um método praticamente idêntico ao que criou a ovelha Dolly. Os pesquisadores vão começar a trabalhar com os óvulos cedidos por doadoras. A primeira etapa consiste em arrancar seu núcleo genético natural – produzindo-se assim o equivalente a um ovo sem gema, apenas com a clara e a casca. Em seguida, os cientistas vão coletar células de adultos que querem se clonar. O núcleo genético das células humanas carrega todas as instruções necessárias para produzir a cópia fiel de um ser humano. No laboratório, uma pequena descarga elétrica faz o núcleo da célula da pessoa a ser clonada se fundir com a célula oca. Quando o procedimento dá certo, imediatamente a célula construída artificialmente começa a se reproduzir e gera um pré-embrião, chamado blastocisto. Esse pré-embrião é, então, transferido para o útero de uma das voluntárias onde vai passar pelo processo de gestação. Teoricamente, os bebês que Antinori e Davos conseguirem produzir serão gêmeos univitelinos dos doadores do núcleo celular.
Teoricamente, reafirme-se. O processo é ainda tão incipiente que há quase certeza de que mesmo os bebês nascidos vivos podem trazer ao mundo falhas genéticas de nascença como as que, aos poucos, vão se descobrindo em Dolly. A ovelha clonada pelo Instituto Roslin nasceu há cinco anos, mas suas células são equivalentes às de uma ovelha mais velha – um animal com 12 anos, exatamente a idade da ovelha cujo DNA foi utilizado na experiência. Por essa razão, não está descartada a possibilidade de que os clones humanos sejam bebês precocemente envelhecidos, que sofram de doenças degenerativas, como a catarata ou o reumatismo e mesmo certos tipos de câncer, ainda na primeira infância. Alguns bezerros e ovelhas clonados nasceram aleijadamente grandes, com peso 60% superior ao de um filhote normal. Como o espaço no útero é menor que o necessário, podem nascer mancos ou com pernas deformadas. Às vezes é a cabeça que cresce demais, e os animais morrem rapidamente. Mesmo os filhotes que nascem perfeitos podem apresentar problemas mais tarde. É comum bezerros clonados morrerem de paralisia renal menos de 48 horas depois de nascerem. A eutanásia é o único caminho para aliviar o sofrimento desses filhotes.
A ciência claramente não está pronta para testar a técnica da clonagem em seres humanos. "Há 25 anos eu achava que as limitações para conseguir clonar uma pessoa eram mera questão de método e tecnologia. Hoje tenho certeza de que há uma séria limitação biológica", diz o geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. Um dos principais argumentos dos pesquisadores que decidiram levar adiante a clonagem é o desenvolvimento de exames capazes de prever anormalidades em um embrião no estágio inicial de formação. Isso contornaria os riscos de se produzirem bebês monstro. Pouca gente acredita na existência desses testes. "A única maneira de chegar à perfeição na clonagem é pela prática, pela repetição, por tentativa e erro. Nas experiências com animais isso é perfeitamente aceitável. Mas com seres humanos é antiético agora e será pelas próximas décadas", disse Alan Colman, diretor da PPL Therapeutics, empresa líder na criação de animais geneticamente modificados para produzir remédios.
A questão ética não vai ceder tão cedo. Perto da clonagem, as discussões morais sobre aborto ou eutanásia tornam-se problemas menores. Do ponto de vista da Igreja, o debate tem muito pouco a ver com as dificuldades científicas do processo de clonagem. Ele é uma variante de um dogma que remonta a Santo Agostinho, no século V, segundo o qual a vida humana começa no momento da concepção. Em tese, os religiosos estariam contra o processo de clonagem por ele produzir embriões condenados a morrer, mas não seriam necessariamente contrários ao processo em si, desde que haja garantias de sucesso na operação. Isso em tese. Na prática, a Igreja Católica repele, com mais veemência que o judaísmo e as denominações protestantes, todas as formas de manipulação genética em seres humanos. "Clonagem de qualquer tipo é antiética e o embrião que é descartado, mesmo que seja antes de completar duas semanas, é vítima de assassinato", diz o bispo dom João Bosco de Faria, designado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para participar da redação do Código de Ética de Manipulação Genética que os religiosos esperam ver adotado no Brasil.
O mais provável é que a ética religiosa não conte muito para os cientistas da estirpe de Antinori e Zavos. Nem para a legião de outros grupos que começam a admitir estar trabalhando na produção de um clone humano. Um desses grupos é um certo Clonaid, clínica de pesquisa com sede nas Bahamas e que tem ligação com uma seita exótica, os raelianos. O Clonaid é formado por cerca de 20 000 pessoas que acreditam na clonagem como o objetivo transcendente da raça humana. Dirigido pela pesquisadora francesa Brigitte Boisselier, o Clonaid está cobrando 200.000 dólares de potenciais candidatos à clonagem. Vista como uma aventureira pelo próprio Antinori, Brigitte sugeriu durante a reunião em Washington que seu grupo já se está preparando para a primeira operação completa de clonagem. Seu grupo quer clonar um bebê de 10 meses que morreu durante uma cirurgia malsucedida no ano passado. Algumas células retiradas na operação e congeladas antes da morte darão aos cientistas o material genético necessário para o experimento. Entre as mulheres arregimentadas para a tarefa de receber um clone no útero está a própria filha de Brigitte, de 22 anos.
Candidatos a fazer cópias de si mesmos não faltam. O americano Randolfe Wicker, de 63 anos, presidente do Human Cloning Foundation, é o mais ardente deles. "A maioria das pessoas quer ter filhos. A essa altura da vida prefiro ter um irmão gêmeo", disse ele a VEJA. "A clonagem não é a chave para a eternidade e sei que meu clone será uma pessoa diferente de mim. Se eu estiver vivo para criá-lo, vou tê-lo como filho. Seu nome será Randolfe Wicker Junior", esclarece o ativista. Motivações como a de Wicker mostram que a clonagem começa a ser encarada como um procedimento útil. "Antes, as pessoas falavam erradamente que a clonagem poderia produzir cópias de Hitler ou de Saddam Hussein", diz Brigitte. "Agora se fala em clonar um filho morto ainda bebê ou fazer a cópia de um filho com leucemia para que o irmão gêmeo resultante possa ser doador da medula que vai salvar-lhe a vida." Seja qual for a razão, depois do anúncio da semana passada ficou claro que a corrida rumo ao impensável, a cópia artificial de um ser humano, está muito mais adiantada do que se imaginava.





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